A Constituição brasileira de 88 é uma das melhores do mundo, afirma Dalmo Dallari

27/08/2019

Dalmo de Abreu Dallari, um dos mais respeitados juristas brasileiros, esteve na sede do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) para participar de uma banca de doutorado na tarde de segunda-feira (26/8). Professor emérito da Faculdade de Direito da USP e professor catedrático da Unesco, Dallari é autor de diversas obras, entre elas O Futuro do Estado e Elementos da Teoria do Estado. Com 87 anos, continua um incansável defensor da democracia e dos direitos humanos. A seguir, trechos da entrevista concedida à equipe de assessoria de imprensa do TJ. 
 
Em meados dos anos 90, o senhor proferiu uma palestra, aqui em Florianópolis, sobre a crise brasileira, analisando-a sob o ponto de vista jurídico. Na ocasião, o senhor afirmou que a Constituição seria um dos caminhos para sair da crise. Isso é válido ainda hoje?
 
Eu continuo achando a Constituição brasileira, de 1988, umas das melhores do mundo. É a Constituição Cidadã, como definiu Ulisses Guimarães. Ela foi feita com intensa participação popular e, além disso, incluiu direitos humanos fundamentais, direitos de todos. Não importa a origem familiar, a cor da pele, a religião, o sexo - são direitos fundamentais da pessoa humana. E isso está pormenorizado na Constituição. Eu diria o seguinte: vamos ser fiéis à Constituição e vamos trabalhar para dar efetividade aos direitos que ela consagra. Assim, e só assim, o Brasil será efetivamente uma sociedade livre, democrática e justa. 

Muitos fatores, porém, impedem que parte significativa da população usufrua desses direitos.  

É verdade, e o que considero decisivo nesta realidade é o fator econômico. Cito um exemplo pequeno, aparentemente banal, mas expressivo: participei de uma reunião na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e lá ouvi, de um grande empresário, bastante conhecido, o seguinte: "Eu acho um absurdo, uma tremenda injustiça, ter que pagar, com o dinheiro dos meus impostos, a escola do filho do pobre. A escola pública só existe porque eu, com o meu dinheiro, banco as despesas. Ora, se eu pago a escola do meu filho, então o pobre também poderia pagar a escola do filho dele. Por que esta diferença?" Aí está, sem nenhum disfarce, o retrato do nosso egoísmo essencial. Lembrei-me de uma observação do Papa Francisco que me pareceu muito feliz e atual, falando da existência dos "adoradores do dinheiro". Esses adoradores são egoístas e completamente insensíveis às necessidades dos outros. Nós estamos vivendo uma crise que, em grande parte, é determinada por essa mentalidade. O poder econômico se agarra a determinados privilégios, não abre mão deles, de jeito nenhum, e simplesmente não se interessa por quem é diferente dele.   

Quando esse poder, ou melhor, parte desse poder, se sente ameaçado, há riscos de uma quebra democrática?  

Sim, foi o que aconteceu em 1964. Por isso, nós precisamos de uma ampla discussão pública, precisamos rediscutir nossos valores. É preciso que a mídia estimule esse debate. Participei, há pouco, de encontros sobre a liberdade de imprensa e a liberdade de expressão, valores fundamentais do povo brasileiro e consagrados na Constituição. Então, é preciso que a imprensa utilize esses direitos fundamentais, esses direitos constitucionais, adotando uma posição crítica. Crítica não significa odiosa, sectária, contra... nada disso. É preciso, porém, fazer uma análise objetiva, chamando atenção e despertando a consciência para a cidadania.

Nós vivemos uma crise de memória também, um movimento de revisão da história, a ponto de lideranças políticas afirmarem que a ditadura civil-militar, lembrada pelo senhor, foi uma coisa boa para o país. 

Para ser direto e simples: isso é muito cínico. É uma tentativa de negação da história. Infelizmente, o próprio presidente da República tem incorrido nisso. A agressão dele ao presidente da Ordem dos Advogados do Brasil é bem expressiva e exemplificativa. Na verdade, ele está tentando esconder a realidade. Na ditadura, entre outras coisas, a luta pela justiça social foi condenada e violentamente combatida. É preciso recuperar esse dado com objetividade, tranquilidade e verdadeiro espírito democrático, com verdadeira consciência de cidadania. É preciso, também, não perder a esperança de que as coisas podem e vão melhorar.